No Blog do Saraiva
O brilho do obscurantismo
Fora do contexto
Há quem conteste a capacidade da imprensa tradicional para criar e administrar a agenda de assuntos públicos no Brasil.
Mesmo com o avanço das mídias eletrônicas e das redes sociais na internet, não há como negar que ainda é nos jornais e – com menos influência – nas revistas, que a sociedade vai buscar os temas com os quais costuma lidar no dia a dia.
No entanto, pode-se afirmar que, com a consolidação dos meios digitais, o aumento da disponibilidade de informações e recursos de interatividade nos aparelhos móveis, a tendência é de maior protagonismo dos chamados leitores e mais interferência na “matriz” de informações representada pelas publicações de papel.
Por esse motivo, seria de se esperar que, estrategicamente, a imprensa estivesse buscando se antecipar a essas mudanças, com a pesquisa de temas afinados com as preocupações e necessidades da sociedade contemporânea.
Mas os editores parecem incapazes de resistir aos chamamentos do obscurantismo.
Sempre que se apresenta diante deles a possibilidade de colocar em debate um tema atual, abrindo o leque de alternativas segundo os valores do tempo que vivemos, não perde quem apostar que os jornais, de modo geral, vão escolher o viés mais retrógrado e reacionário.
Reacionário, aqui, quer significar aquele que se contrapõe à evolução social.
O direito das mulheres a disporem de sua sexualidade é uma das conquistas mais importantes da modernidade, e sua negação é parte central nas controvérsias que produzem, ainda hoje, alguns dos mais graves conflitos decorrentes da globalização.
Nenhum jornalista ignora, ou deveria ignorar, a importância de se consolidarem certos avanços da consciência social que apontam para a igualdade de gêneros e a autossuficiência da mulher.
Por esse motivo, descarte-se desde já a hipótese da ignorância no caso da reportagem publicada pelo Estado de S. Paulo nesta terça-feira, dia 14, sobre um depoimento dado pela nova ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, a uma professora da Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 2004.
O jornal paulista considera tão relevante essa história que produziu uma chamada na sua primeira página para contá-la.
Fora do contexto
Nessa entrevista, cujo teor é parcialmente negado pela ministra, ela teria dito que fez um “treinamento de aborto” na Colômbia em 1995.
Ouvida pelo jornal, ela afirma, por exemplo, que nunca esteve na Colômbia.
No trecho reproduzido pelo Estadão, ela aparece relatando um curso de autoexame do colo do útero que incluiria a capacitação de mulheres para “lidar com o aborto”.
O jornal revela também que Eleonora Menicucci já se havia submetido a dois abortos praticados por médicos no início dos anos 1970.
No trecho retirado de contexto, ficam mal explicadas as circunstâncias em que esses episódios aconteceram: ela tinha pouco mais de vinte anos de idade, vivia na clandestinidade ou estava presa, sendo submetida a torturas.
Pode-se escolher uma variedade de abordagens para se demonstrar que a reportagem obscurantista foi feita de má-fé e com propósitos políticos.
O jornal afirma, por exemplo, que a entrevista (trazida a público por um blog da revista Veja) “deve alimentar as pressões de integrantes da bancada evangélica no Congresso pela demissão da ministra”.
O mais correto seria afirmar que “o Estadão dá repercussão a uma entrevista descontextualizada, feita no âmbito de um estudo acadêmico, com o propósito de provocar desconforto no governo”.
Também se poderia acrescentar que o jornalão paulista tem olhos para as manifestações obscurantistas da revista Veja, que há muito abdicou do jornalismo de qualidade, mas não conseguiu ler uma reportagem da Carta Capital (ver http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/reportagem_revela_uma_historia_escabrosa) sobre o favorecimento do especulador Naji Nahas na desocupação do lugar conhecido como Pinheirinho, em São José dos Campos.
A imprensa livre, um dos grandes patrimônios da modernidade, tem como pressuposto anunciar o novo, e com isso se supõe que deva se colocar na vanguarda do processo de superação de preconceitos.
Ao alimentar propositalmente os argumentos do que há de mais retrógrado no Congresso Nacional, a reportagem do Estadão não apenas faz um tributo ao medievalismo na política, mas comete um desrespeito à luta das mulheres por sua emancipação.
Pior: o jornal parece se orgulhar de seu obscurantismo.
Estadão ignora fatos e palavras da ministra e diz que apenas repercutiu blog ("insuspeito"?) da Veja, mas não soube repercutir a privataria tucana da Carta Capital |
Fora do contexto
Há quem conteste a capacidade da imprensa tradicional para criar e administrar a agenda de assuntos públicos no Brasil.
Mesmo com o avanço das mídias eletrônicas e das redes sociais na internet, não há como negar que ainda é nos jornais e – com menos influência – nas revistas, que a sociedade vai buscar os temas com os quais costuma lidar no dia a dia.
No entanto, pode-se afirmar que, com a consolidação dos meios digitais, o aumento da disponibilidade de informações e recursos de interatividade nos aparelhos móveis, a tendência é de maior protagonismo dos chamados leitores e mais interferência na “matriz” de informações representada pelas publicações de papel.
Por esse motivo, seria de se esperar que, estrategicamente, a imprensa estivesse buscando se antecipar a essas mudanças, com a pesquisa de temas afinados com as preocupações e necessidades da sociedade contemporânea.
Mas os editores parecem incapazes de resistir aos chamamentos do obscurantismo.
Sempre que se apresenta diante deles a possibilidade de colocar em debate um tema atual, abrindo o leque de alternativas segundo os valores do tempo que vivemos, não perde quem apostar que os jornais, de modo geral, vão escolher o viés mais retrógrado e reacionário.
Reacionário, aqui, quer significar aquele que se contrapõe à evolução social.
O direito das mulheres a disporem de sua sexualidade é uma das conquistas mais importantes da modernidade, e sua negação é parte central nas controvérsias que produzem, ainda hoje, alguns dos mais graves conflitos decorrentes da globalização.
Nenhum jornalista ignora, ou deveria ignorar, a importância de se consolidarem certos avanços da consciência social que apontam para a igualdade de gêneros e a autossuficiência da mulher.
Por esse motivo, descarte-se desde já a hipótese da ignorância no caso da reportagem publicada pelo Estado de S. Paulo nesta terça-feira, dia 14, sobre um depoimento dado pela nova ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, a uma professora da Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 2004.
O jornal paulista considera tão relevante essa história que produziu uma chamada na sua primeira página para contá-la.
Fora do contexto
Nessa entrevista, cujo teor é parcialmente negado pela ministra, ela teria dito que fez um “treinamento de aborto” na Colômbia em 1995.
Ouvida pelo jornal, ela afirma, por exemplo, que nunca esteve na Colômbia.
No trecho reproduzido pelo Estadão, ela aparece relatando um curso de autoexame do colo do útero que incluiria a capacitação de mulheres para “lidar com o aborto”.
O jornal revela também que Eleonora Menicucci já se havia submetido a dois abortos praticados por médicos no início dos anos 1970.
No trecho retirado de contexto, ficam mal explicadas as circunstâncias em que esses episódios aconteceram: ela tinha pouco mais de vinte anos de idade, vivia na clandestinidade ou estava presa, sendo submetida a torturas.
Pode-se escolher uma variedade de abordagens para se demonstrar que a reportagem obscurantista foi feita de má-fé e com propósitos políticos.
O jornal afirma, por exemplo, que a entrevista (trazida a público por um blog da revista Veja) “deve alimentar as pressões de integrantes da bancada evangélica no Congresso pela demissão da ministra”.
O mais correto seria afirmar que “o Estadão dá repercussão a uma entrevista descontextualizada, feita no âmbito de um estudo acadêmico, com o propósito de provocar desconforto no governo”.
Também se poderia acrescentar que o jornalão paulista tem olhos para as manifestações obscurantistas da revista Veja, que há muito abdicou do jornalismo de qualidade, mas não conseguiu ler uma reportagem da Carta Capital (ver http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/reportagem_revela_uma_historia_escabrosa) sobre o favorecimento do especulador Naji Nahas na desocupação do lugar conhecido como Pinheirinho, em São José dos Campos.
A imprensa livre, um dos grandes patrimônios da modernidade, tem como pressuposto anunciar o novo, e com isso se supõe que deva se colocar na vanguarda do processo de superação de preconceitos.
Ao alimentar propositalmente os argumentos do que há de mais retrógrado no Congresso Nacional, a reportagem do Estadão não apenas faz um tributo ao medievalismo na política, mas comete um desrespeito à luta das mulheres por sua emancipação.
Pior: o jornal parece se orgulhar de seu obscurantismo.
Luciano Martins Costa / Observatório da Imprensa
Nenhum comentário:
Postar um comentário