Ex-moradores da região da Luz, no centro de São Paulo, conhecida como "cracolândia", criticam as ações da prefeitura e do governo estadual contra usuários de drogas. Reunidos nesta terça-feira (10) na Casa de Oração do Povo de Rua, eles cobraram um tratamento humano para os adictos e afirmaram, baseados nas próprias experiências, que o caminho para superar o problema não passa pela violência, mas pelo afeto.
“Não é tratando a gente que nem lixo que resolve”, disse Marina, que deixou a cracolândia há 15 dias para começar um processo para se livrar do vício em crack. Ela conta que estava “muito louca” e não conseguia sair “daquele inferno”, mas pôde superar as dificuldades quando lhe ofereceram carinho. Ela reside agora em uma das casas de acolhida da Missão Belém, da Igreja Católica paulistana.
Os depoimentos, organizados pelo padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua, coincidiram em indicar que se trata de um equívoco a postura ofensiva desencadeada na primeira semana do ano pelo governador paulista, Geraldo Alckmin, e pelo prefeito da capital, Gilberto Kassab. Para os antigos moradores, a repressão comandada pela Polícia Militar fará a cracolândia simplesmente se deslocar de lugar, sem que seja verdadeiramente resolvido o problema de fundo.
“De onde chega a droga?”, indagou o padre Rogério Valadares, da Aliança de Misericórdia, que trabalha há dez anos na acolhida a usuários. “O que recupera não é remédio, não é clínica de recuperação. É o amor. É quando a pessoa redescobre o sentido da vida.”
Os ex-moradores da região acrescentaram que é um erro imaginar que um usuário de droga é uma pessoa “sem noção”, como dizem alguns agentes públicos, e indicaram que é preciso tratá-los com respeito e como pessoas conscientes. Padre Júlio apontou que existe necessidade de transmitir confiança para quem está em situação de adicção, e deixar de atuar como a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana. Ele acredita que os governos municipal e estadual cederam à tentação da solução imediata, que, na visão do líder religioso, não existe.
O padre vê sadismo no nome da intervenção, batizada pela prefeitura de Operação Sufoco, e cobra a abertura de centros de atendimento que funcionem durante todo o dia. “O problema não é matemático. O problema é humano. A solução não é de uma fórmula, é de uma postura”, cobra. “Não é mágica. Não temos solução para tudo, mas temos um caminho seguro”, afirmou padre Júlio.
A Polícia Militar argumenta que precisa usar táticas agressivas para “quebrar” o abastecimento da cracolândia. As ações dos últimos dias incluíram uso de disparos de balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes. A corporação fala em uma estratégia de “dor e sofrimento” para mudar a região, que responde pelo principal plano urbanístico da gestão Kassab, o Nova Luz, que promete poder transformar a região com a concessão a empresas privadas do setor de construção de prerrogativas de desapropriações e outras intervenções.
Em entrevista coletiva concedida nesta semana, os comandantes da ação da prefeitura e do governo estadual indicaram que, dentro de um mês, começam a ser abertos os centros de assistência social no bairro. Em 60 dias, os de saúde passarão a funcionar, ainda segundo as fontes oficiais.
Recuperação
“Em vez de dor e sofrimento, precisa de paz e alegria”, diz Gilson, hoje com 35 anos, que morou no local durante seis e está há doze longe das drogas. Ele cursa o terceiro ano da Faculdade de Teologia e trabalha nas missões que retiram os usuários das ruas. A história de Gilson começou a mudar após uma madrugada fria em que alguém lhe colocou a mão no ombro e disse que lhe amava.
“É uma prática de exorcismo muito forte alguém te abraçar e dizer que te ama”, reconhece Paulinho, que começou a beber aos 12 e foi viciado em cocaína entre os 17 e os 23. “Era músico, tinha plano de ser famoso, mas me frustrei com aquela vida. Estava a um passo de me abandonar de uma vez.”
Pitter, que passou de usuário a traficante, ficou preso durante pouco mais de um ano. “Quando saí, achei que precisava recuperar o tempo perdido. Voltei para o tráfico”. Passou mais seis meses perambulando, a ponto de a família dá-lo como morto. Um dia, enfim, decidiu que tinha de mudar. Arrumou emprego e avisou os parentes. “O que me ajudou foi o carinho que minha família teve por mim. Se não fosse por isso, hoje estaria morto, com certeza.”
Gumercindo, hoje com 43 anos, passou mais de uma década e meia na cadeia e como dependente químico e morou cinco anos na cracolândia. Ele saiu de casa aos 13, cansado da violência praticada pelo pai contra a mãe. Ele aceitou ir para a casa de acolhida em Jacareí, no interior paulista, só para “engordar”, ou seja, para ter condição física de voltar para a rua, mas acabou mudando de ideia no meio do caminho. “Um dia, me abraçaram do jeito que eu estava. Dias sem tomar banho, o cabelo comprido. Aquilo foi me tocando. Eu me senti sendo gerado novamente”, relata. “Senti que tinha de doar a minha vida”, diz. Hoje, retira usuários da cracolândia que queiram receber ajuda.
“Ter de fazer alguma coisa não significa fazer qualquer coisa. E não significa fazer a pior coisa”, complementa Júlio Lancelotti. “Não estamos pregando o messianismo. Estamos testemunhando que essas pessoas têm de descobrir um valor que as preencha. A violência não é a solução.”
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